É pau, é pedra, é o fim do caminho.
É peroba no campo, é o nó da madeira
É o vento ventando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumeeira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
É a luz da manhã, é o tijolo chegando
É o projeto da casa, é o corpo na cama
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama
É um belo horizonte, é uma febre terçã
São as águas de março fechando o verão
Tom Jobim
É o fim do caminho
Após algumas conversas com os clientes marcamos de visitar o terreno. No caminho, saindo do trecho pavimentado pegamos uma estradinha de terra bem íngreme, seguimos com os clientes até o final desta estradinha, onde encontramos uma clareira com um formato de concha, era lá o platô onde iriamos realizar o projeto. Com elevação de 1470m acima do nível do mar, o terreno está cerca de 600m mais alto que a estrada pavimentada. Pode parecer apenas uma curiosidade à primeira vista, mas foi um dado crucial para determinar a lógica dos processos de obra.
Apesar de ter estudado as necessidades e desejos que os clientes tinham para essa casa, não tinha nenhuma ideação do que poderia ser o projeto. Eu sempre me forço a não ter ideias ou especulações de projeto antes de visitar o terreno, tento abordar a visita ao terreno como recém-saído de uma nave pousada em outro planeta, buscando o vislumbre da primeira vista, e a busca de descobertas desse lugar que eu nunca vi.
É pedra
Já no terreno, com essa peculiar forma de arquibancada de estádio de futebol, entre o capim alto avistei dois topos de pedras que me chamaram a atenção, para onde quer que eu olhasse voltava imediatamente a atenção para essas pedras, apesar de estarem excêntricas tinham um certo magnetismo, adentrando o mato na altura do pescoço, chegando mais próximo, fiquei surpreso por encontrar um par de pedras com exatamente a mesma altura de topo e distando cerca de 5m entre elas, de cima da pedra mesmo fiz os primeiros croquis de estratégia de projeto.
É pau
De cima de uma das pedras a estratégia de projeto veio de forma clara e simples, como se já existisse no local essa demanda, algo simples como apoiar uma viga de MLC em cada pedra, fazendo dois pórticos, utilizando desta forma as pedras como pilares, de modo que o nível de referência do projeto eram os topos das pedras, que definiriam a altura da laje térrea. Na visita mesmo foi apresentado aos clientes a ideia meio maluca, que em primeiro momento eles não captaram totalmente, por falta de representações gráficas à altura, mas toparam o partido, imagino que pela empolgação do arquiteto.
É a viga, é o vão
As vigas principais da casa em MLC (madeira laminada colada) possuem 14m de extensão, com um vão visível total que se abre frontalmente para a vista panorâmica da pedra do baú, a partir de um arranjo estrutural e de caixilhos que aparenta flutuar sem apoios e abrir-se totalmente para o entorno.
De um lado as vigas apoiam-se nas pedras e de outro no bloco fechado em steel frame.
É o projeto da casa
O corpo principal da casa é composto de dois blocos contíguos, um totalmente transparente destinado às relações sociais e coletivas, e outro privativo destinado às ações mais individuais e introspectivas, sendo este bloco totalmente revestido de madeira ebanizada, inclusive nas aberturas. Os blocos possuem exatamente as mesmas medidas.
Há também o anexo em container destinado à dormitório de visitas, banheiro externo e serviços.
São as águas de março fechando o verão
Durante a obra, subindo a íngreme estradinha de terra enquanto chovia, estava desejando mentalmente que a chuva desse uma trégua de alguns dias para que fosse possível receber alguns materiais transportados por caminhão, que não conseguiriam subir a estrada nestas condições, e como chovia há semanas a fio algumas entregas estavam atrasadas. Como dependia da previsão do tempo para marcar as entregas comecei a notar que no mês corrente quase não tivemos tempo firme por mais de 2 dias, estava começando a achar atípico, quando começo a prestar atenção na música a fundo tocando no rádio do carro, Águas de março do Tom Jobim, comecei a rir sozinho, por que até agora não tinha aprendido nada com a música que ouvia desde a infância, em março no Sudeste do Brasil chove, e chove muito, e Tom sabia disso.
O conceito e estrutura da residência foi pensada a partir das rochas encontradas no local, buscando executar uma obra que integrasse de forma respeitosa no ambiente. Esse projeto foi vencedor do 9° prêmio Saint Gobain Asbea.
Projeto: Casa Cancha
Escritório: Estúdio HAA! – www.ha.arq.br
Autor: Homã Alvico
Complementares: Engenharia: Fabio Farinelli; Estrutura MLC: Rewood
Localização: Gonçalves, MG