No degrau das portas de nossas casas, Paulo Mendes da Rocha poetizou a geografia e se fez Eterno e Menino como somente os deuses atemporais poderiam soar. O seu legado jamais irá se apagar!
O poeta Fenando Pessoa, através de seu heterônimo Alberto Caeiro na obra “O guardador de rebanhos”, profetiza o seu Cristo “humano e menino” com toda a força da geomorfologia que a poética lusitana pode traduzir: “Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas/No degrau da porta de casa/Graves como convém a um deus e a um poeta/E como se cada pedrafosse todo o universo/E fosse por isso um grande perigo para ela/Deixá-la cair no chão.”.
Para retratar um pouco do magistral arquiteto Paulo Archias Mendes da Rocha, nada mais adequado que os versos do maior poeta da língua portuguesa que com a sua obra mítica destaca-se no panteon dos gênios da humanidade. Paulo Mendes dispensa citações, recomendações, rótulos, estereótipos e profecias: é hoje o maior arquiteto vivo da história do Brasil, pura e simplesmente. Galgar este título honorário é tão difícil quanto galgar quaisquer outros que o senhor Mendes vem colecionando ao longo de sua carreira.
Capixaba, libriano, esteta, nasceu na cidade de Vitória (ES) em 1928 arrodeado de estórias de maravilhamento, a ouvir que poderia construir desde casas incríveis até navios imensos. O avô comandou o Serviço de Navegação do São Francisco, o pai era um reconhecido engenheiro. Com eles, Paulo Mendes foi criado a contemplar a “engenhosidade do mundo”. Observar a intervenção humana de forma criteriosa na própria natureza lançou a pedra fundamental do que viria a ser o futuro arquiteto que deveria assombrar o mundo. Segundo sua própria observação, “A primeira e primordial arquitetura é a geografia!”
Formado no ano de 1954 por uma das primeiras turmas da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Presbiteriana Mackenzie (São Paulo, SP), foi rapidamente convidado pelo colega Vilanova Artigas para lecionar na FAU/USP em 1961, quando ajuda a principiar o movimento que iria estabelecer novos e duradouros padrões para o fazer arquitetônico no Brasil – constituem assim a “Escola Paulista de Arquitetura Brasileira”. O grupo de novos arquitetos inaugurava naquele momento a produção caracterizada pelo emprego do “Brutalismo” do concreto armado, com ênfase nas produções de grande porte, estruturas racionais, grandes vãos, pilares de concreto que se afinam ao encontrar o solo, formas plásticas com base em esqueleto estrutural feitas em concreto armado e aparente.
Nascia nesta época não apenas o grande arquiteto brasileiro em suas formas e texturas brutas, mas uma geração inteira que preconizava o profissional inserido em alto teor de um contexto social – dentro de um projeto de cidade e sociedade, a repensar o mundo e a própria geografia. A “função social” do arquiteto fez com que Paulo Mendes e vários de seus colegas fossem afastados, tivessem o direito político cassado e acabassem proibidos de dar aulas a partir do golpe militar de 1964. Paulo Mendes é completamente afastado no ano de 1968, ele e os seus contemporâneos voltariam a lecionar somente no ano de 1980.
De natureza íntima e monumental, paradigmático, brutal, apocalíptico, Paulo Mendes foi citado este ano pelos críticos do “Leão de Ouro” por recomendação do chileno Alejandro Aravena. Unânime dentre todos, pontua-se com letras garrafais a “eternidade de sua obra” e a “visão telúrica” que atravessa todo o seu legado: “Ele é um desafiador não-conformista e, simultaneamente, um realista apaixonado. Suas áreas de interesse vão além da arquitetura, em reinos políticos, sociais, geográficos, históricos e técnicos. O papel que ele desempenhou para muitas gerações de arquitetos no Brasil, América Latina e em todos os lugares é o de uma pessoa capaz de unir esforços compartilhados e coletivos, bem como alguém capaz de atrair outros para a causa de um melhor ambiente construído.”
O prêmio de Veneza talvez seja o mais belo, romântico e poético para um pensador no nível monstruoso de Paulo Mendes, humildemente definido pelo próprio como “talvez o prêmio mais encantador possível para todos os arquitetos. A figura do leão alado, que compõe o troféu, é emblemática e muito linda. Eu nunca esperei ganhá-lo!”.
Generoso, ele ainda ofereceu para todos os colegas e representantes da arquitetura no Brasil que acompanharam a sua trajetória e também para os colegas de futuras gerações: O Leão de Ouro de 2016 confirma Paulo Mendes da Rocha como o mais celebrado arquiteto brasileiro reconhecido internacionalmente, um Pritzker de 2006 (considerado o Nobel da Arquitetura no mundo), ladeado apenas por ninguém mais ninguém menos que Oscar Niemeyer. Uma personalidade recheada de prêmios que trouxe uma visibilidade ímpar para o nosso país e resgatou com destaque no mundo todo a moderna arquitetura brasileira nos anos 1990 em diante, um feito que não se repetia desde as geniais décadas de 40 e 60. São deles obras fenomenais como a restauração da Pinacoteca de São Paulo (1988-1999), a Capela de São Pedro (Campos do Jordão, 1987), a Praça do Patriarca no centro de São Paulo (2002), a restauração da Estação da Luz e construção do Museu da Língua Portuguesa (2006) e o Museu Nacional dos Coches (Lisboa, Portugal, 2008). Somente para citar alguns dos inúmeros feitos, impossíveis de serem enumerados neste artigo. Impossível também seria enumerar as menções honrosas e as premiações ao longo dos anos ao redor do mundo.
Basta lembrar a sua contribuição como deferiram os críticos especializados do comitê da Bienal de Veneza que destacou “extraordinária qualidade” e a “durabilidade” da arquitetura de Mendes da Rocha.
“Muitas décadas após serem construídos, todos os seus projetos resistiram ao teste do tempo, tanto estilisticamente quanto fisicamente”, diz o comunicado. “Com essa consistência, que pode ser resultado de sua integridade ideológica e da habilidade no campo estrutural, Paulo Mendes da Rocha faz um trabalho não conformista e provocativo ao mesmo tempo”.
A Bienal destacou ainda a influência do homenageado sobre “diversas gerações de arquitetos no Brasil, na América Latina e no mundo”, que estimula os profissionais da área “a lutar pela melhoria do ambiente construído”.
O “Guardador de Rebanhos”, engendrado na obra de Paulo Mendes da Rocha, transparece de maneira lúdica como apenas um gênio poderia fazer. Ao lançar as suas pedras como se fossem universos paralelos espalhados pelo ar, ele retrocede e transgride a nossa percepção humana a respeito do mundo, nos tornou sacros naquilo que temos de mais humano e mais humanos naquilo que teríamos de natural.
No degrau das portas de nossas casas, Paulo Mendes da Rocha poetizou a geografia e se fez Eterno e Menino como somente os deuses atemporais poderiam soar. O seu legado jamais irá se apagar!